Há décadas, eles têm usado diferentes técnicas para criar peças cheias de identidade
Celebrado no dia 19 de março, o Dia Mundial do Artesão serve para nos fazer refletir acerca da contribuição deste profissional para a formação da identidade nacional. Com técnicas e saberes que chegaram a partir da imigração ou que já nasceram aqui com os povos originários, em cada canto do país, o artesanato ganhou contornos brasileiros, assimilando características tanto dos locais, quanto das pessoas que o fazem. Neste contexto, para além da importância social e econômica deste trabalho, homenagear os artesãos é uma forma de valorizar uma riqueza que é difícil de ser mensurada, mas que é facilmente percebida por quem convive com estes grupos no dia a dia.
“Para muitos destes artesãos, a partir da modelagem do barro, do trançado de palha, do entalhe ou da tecelagem, eles criam peças que se tornam extensões ou reflexos de si mesmos. No Jequitinhonha, por exemplo, elas criam bonecas inspiradas nas características das mulheres da região. Já no Xingu, eles produzem peças que representam não só os animais silvestres, mas também os grafismos indígenas que eles utilizam no próprio corpo em rituais e cerimônias religiosas. O valor do artesanal está justamente na possibilidade do artesão imprimir na peça as suas visões, percepções e sonhos que resultam em trabalhos repletos de identidade e originalidade”, afirma Lucas Lassen, curador e diretor criativo da Paiol, que trabalha com cerca de 400 grupos de todo o Brasil.
Abaixo, descubra seis artesãos com histórias e trabalhos que valem a pena conhecer.
Mestre Jasson
Nascido no povoado de Monte Santo, em Belo Monte, no interior de Alagoas, Jasson Gonçalves da Silva figura entre os principais artesãos brasileiros com peças em museus, galerias e grandes coleções de arte popular. Mas nem sempre foi assim. Ainda jovem, em busca de trabalho, ele se mudou para Salvador, onde exerceu diversas funções até acabar em uma produtora de cerâmica. Por lá, começou a produzir pequenas peças utilitárias, aprendendo com um amigo português. Depois de 15 anos na Bahia, ele decidiu voltar à sua terra natal e tentar continuar por lá o trabalho com a cerâmica. “Não deu muito certo, porque o barro daqui da região é muito ruim. Você faz 20 peças e aproveita duas ou três, porque depois da queima, a maioria acaba quebrando”, revela o artesão.
Por influência de Maria Amélia Vieira, da Karandash, tradicional galeria de Maceió, por volta de 2013 ele acabou se dedicando à madeira, utilizando o entalhe e técnicas de encaixe que se tornaram sua marca registrada. “Um dia, ela chegou me contando uma história sobre um rei que teria se perdido na mata e que, para manter sua majestade, precisou construir um trono com galhos secos descartados de timbaúba, algarobeira e imburana, espécies típicas do sertão. Aquilo ficou na minha cabeça e eu passei a construir a partir da imaginação”, completa Jasson.
Foi aí que nasceram suas cadeiras, que têm saído do sertão para ganhar o Brasil e o mundo. Além de pinturas coloridas, as peças contam com flores, estrelas, cactos e qualquer outro elemento que habite o mundo dos sonhos do artista. Pai de cinco filhos, apenas um tem seguido os passos do pai. Mas ele também tem influenciado outros parentes e amigos a seguirem pelo caminho das artes.
Mestre Antônio Rodrigues
Morador do maior centro de artes figurativas das Américas, no bairro de Alto do Moura, na cidade de Caruaru, em Pernambuco, o artesão Antônio Rodrigues segue o legado deixado por seu pai, Zé do Caboclo que ao lado dos Mestres Vitalino e Manuel Eudócio, foi responsável por algumas das obras mais representativas do sertão nordestino. Antônio, que começou no ofício como ajudante no ateliê de seu pai fazendo pinturas e preparando a matéria-prima, fez a primeira peça aos 15 anos e, desde então, nunca mais parou.
Inspirado pela estética, fauna e flora do agreste e pelo cotidiano da vida rural, ele já criou peças com projeção nacional e internacional. Ele foi um dos artesãos brasileiros convidados para representar a arte popular brasileira no Ano do Brasil na França, que aconteceu em 2005. Além disso, uma de suas obras mais icônicas, que retrata um engenho de rapadura, é parte do acervo do Museu do Pontal, no Rio de Janeiro. Antônio também é um dos artesãos que utiliza o barro para representar a La Ursa, personagem tradicional do carnaval pernambucano. “O que me inspira é o meu quintal, as ruas, as pessoas e tudo o que se encontra por aqui”, completa o artesão.
Antônio é casado e divide o ateliê com Maria Luci, com quem teve quatro filhos, e que é responsável pela pintura de suas peças. Atualmente, Amanda, a terceira filha do casal, também segue na mesma profissão levando adiante a tradição familiar nas artes.
Anaisa Rosa
Filha, neta e bisneta de artesãos, Anaisa Rosa está no artesanato desde os 9 anos de idade. Hoje, aos 27, e parte da quarta geração da família na profissão, ela integra a equipe da Associação de Artesãos de Santa Brígida, criada por seu avô, José Valdo Rosa, na cidade de Santa Brígida, no interior da Bahia. Por lá, eles trabalham com duas técnicas: o trançado da fibra de Licuri e o entalhe em madeira. Seu avô foi o responsável por criar a associação, que hoje conta com pouco mais de 30 pessoas, muitas delas sendo primos, irmãos e cunhados que chegam à família já entrando no contexto do artesanato.
A fibra de licuri é utilizada para produzir peças utilitárias e decorativas, como cestas, porta-joias e fruteiras. Já a partir do entalhe na umburana – madeira nativa da região – eles criam pássaros inspirados no Galo de Campina, também conhecido como Cardeal-do-Nordeste. “Aqui é mais comum que os artesãos se dediquem mais a uma técnica ou outra, mas eu acabei aprendendo a fazer os dois, tanto o entalhe, quanto o trançado”, revela a artesã.
Nenê Cavalcanti
Dentre os principais nomes do estado da Paraíba nas artes plásticas, Nenê Cavalcanti foi a primeira de sua família a enveredar por este mundo. Filha de um agricultor e uma dona de casa, ela conta que seus pais – devido à simplicidade – não gostavam da ideia de ter um filho artista. “Eles não incentivavam nem um pouco quando eu era criança, porque eles queriam que nós tivéssemos um trabalho formal, de preferência na roça. Mas mesmo assim, eu já criava pequenas peças com barro”, revela.
Mais tarde, nos anos 1970, ela se mudou para João Pessoa e acabou estudando enfermagem, visto que perdeu o prazo para a prova do curso de Artes. Quando foi ingressar na área, passou a utilizar suas habilidades artísticas para trabalhar com crianças com deficiências, o que reacendeu seu interesse por se tornar artista. Desde seu retorno à faculdade no final da década de 1970 e começo de 1980, ela nunca mais parou de trabalhar com o barro e a cerâmica.
Hoje, com um trabalho que se espalhou pelo mundo em coleções particulares, eventos e exposições, suas obras estão fortemente ligadas ao universo feminino. Mulheres cheinhas, de diferentes cores e texturas de cabelo fazem parte de seu portfólio. Outro destaque fica para seus anjinhos deitados sobre as próprias pernas, que fazem referência à posição atípica que sua filha, Juliana, dormia quando bebê.
Maraki Waurá
Filho de artesãos, Maraki Waurá (ou Waujá), é parte de uma das etnias indígenas que mais se destacam na produção artesanal brasileira, a Waurá. Reconhecidos majoritariamente pela cerâmica, com a qual produzem peças utilitárias que são verdadeiras obras de arte, eles habitam o Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso, próximos a outras etnias com as quais dividem outras técnicas como o entalhe da madeira, o trançado de palha e o trabalho com as miçangas.
Trabalhando há mais de 20 anos como artesão, Maraki mantém a tradição de seu povo, produzindo panelas, potes e vasos zoomorfos – que imitam as formas e características dos bichos da floresta – além de criar outros elementos utilizados em rituais e cerimônias religiosas. “Mais do que ser a principal fonte de sustento da nossa aldeia, o artesanato é parte da identidade do indígena, ele é ferramenta de trabalho, é onde colocamos o alimento, onde sentamos e dormimos. É praticamente uma extensão do que nós somos”, completa o artesão.
Zezinha
Seguindo a tradição da maioria das artesãs do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Maria José Gomes da Silva, a Zezinha, começou no artesanato ainda criança, aos 11 anos de idade, ajudando sua mãe, a também artesã Maria Gomes. “No Vale, a gente já nasce neste universo artesanal. Nossas mães, avós, bisavós e tias estão há várias décadas modelando a vida no barro”, afirma Zezinha, que também acabou influenciando a escolha profissional das duas filhas, Aline e Cláudia.
Assim como outras mulheres de sua comunidade, seu trabalho está fortemente ligado à uma infância sem brinquedos que a estimulou a usar o barro para explorar sua criatividade e a ludicidade, sobretudo na criação de bonecas. Ao longo destes mais de 40, ela tem feito peças utilitárias e decorativas, como vasos, flores, filtros e muitas outras. Mas sua predileção pelas bonecas a transformou em uma artista que tem peças em coleções de várias partes do mundo, com obras na sede da Organização das Nações Unidas – ONU, em Nova Iorque, e na coleção pessoal de Nicolas Sarkozy, ex-presidente da França.
Hoje, aos 55 anos e com uma produção propositalmente mais devagar, ela conta com a ajuda do marido, Ulisses, na comercialização e logística das peças.