A história das carrancas, obras de arte que misturam crenças e folclore

Escultura típica das embarcações do rio São Francisco se tornou uma das figuras mais emblemáticas da cultura popular brasileira

Por Redação Casa e Jardim

27/11/2024 06h35

Com quase 200 anos de história, as carrancas fazem parte da cultura popular brasileira — Foto: Penellope Bianchi/Divulgação

Figuras típicas do artesanato brasileiro, as carrancas – esculturas com forma humana ou animal – são envoltas em mistérios e crenças. Surgidas na segunda metade do século 19, período marcado pelas grandes navegações ao longo do rio São Francisco, elas foram criadas para ornamentar embarcações que levavam mantimentos e movimentavam os comércios de cidades distantes das capitais.

“Unindo a arte ao misticismo típico do povo brasileiro, estas figuras folclóricas começaram a ser produzidas por artistas para serem colocadas nas proas de barcos que circulavam por toda a extensão do rio”, conta Lucas Lassen, curador da Paiol, marca que atua com mais de 400 artesãos e comunidades artesanais de todo o Brasil.

Mestre Bitinho (à esquerda) e Ana das Carrancas são reconhecidos internacionalmente por conta de suas peças — Foto: Penellope Bianchi/Divulgação

“A ideia era ter uma figura imponente, com uma fisionomia sisuda, pintada com cores fortes, com grandes dentes e cara de ‘poucos amigos’ para afastar não só maus espíritos, mas também possíveis ladrões pelo caminho”, acrescenta ele.

Segundo Lucas, a carranca acabou se tornando uma característica comum nas embarcações da região e, com o tempo, foram transformadas em amuletos contra maus espíritos, ganhando adaptações – sobretudo de tamanho – para se adequar a outros ambientes.

Hoje, quase 200 anos após surgirem, a produção de carrancas continua forte na arte popular, com diferentes representações feitas, na maioria, de madeira talhada.

As obras do artesão João da Conceição têm um formato peculiar talhado em madeira — Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Como o rio São Francisco começa em Minas Gerais, atravessa toda a Bahia, passa por Pernambuco e deságua na divisão natural entre Sergipe e Alagoas, elas foram ganhando interpretações ao longo deste percurso, que abarca mais de 520 municípios.

De Minas Gerais, algumas das obras que mais se destacam são as da Associação dos Carranqueiros de Pirapora, cidade às margens do rio. Entalhadas em madeira, com grandes dentes e desenhos compostos por linhas e círculos, elas mantêm a cor natural da madeira, sem pintura.

No Vale no Jequitinhonha, tradicional reduto mineiro de ceramistas, o artesão José Maria, da cidade de Caraí, usa o barro para dar vida a peças com formas mais geométricas, mantendo a pintura característica do vale, que utiliza os diferentes tipos de barro para produzir variadas tonalidades de pigmentos.

João Kambiwá (à esquerda) traz uma estética que remete à sua vivência indígena, já o Mestre Jasson mantém seus traços marcantes com formato orgânico e cores mais chamativas — Foto: Penellope Bianchi/Divulgação

Na Bahia, mais especificamente em Jaguarari, um dos destaques fica para os artesãos Eliene da Silva e Fernando Ferreira da Conceição, que também trabalham com a madeira e trazem peças com características bem conhecidas do público, como lábios e olhos vermelhos e cabelos pretos, além de João da Conceição, que produz peças de formatos exóticos.

Reconhecido como o mais antigo criador de carrancas de Petrolina, em Pernambuco, Severino Borges de Oliveira, o Mestre Bitinho, chegou à cidade nos anos 1970, mas é natural de Taipu, no Rio Grande do Norte. Sem qualquer desenho prévio, ele trabalha na madeira umburana usando ferramentas básicas, como formão, facas e serrotes.

Outra grande referência pernambucana é a Mestre Ana das Carrancas – Ana Leopoldina dos Santos – que nasceu em Ouricuri, mas também se destacou em Petrolina, cidade que tem até um centro de arte e cultura com seu nome.

Obra da Associação dos Carranqueiros de Pirapora e, à direita, o artesão João Maria retrata a carranca a partir da cerâmica — Foto: Penellope Bianchi/Divulgação

Em suas criações, ela transportou o personagem para o universo da cerâmica, colocando uma identidade própria, que aparece tanto em peças decorativas, quanto utilitárias. Seu legado é mantido por familiares que continuam produzindo peças com as mesmas características.

Ainda em Pernambuco, os traços indígenas também aparecem nas carrancas de João Kambiwá, da etnia Kambiwá, que também usa madeira em suas obras. Destacando orelhas enormes e os tradicionais dentes à mostra, elas se destacam por contar com pequenos recortes que formam uma espécie de grafismo.

De Pernambuco, o rio começa a descer para Alagoas, atravessando todo o estado. Por lá, mais especificamente em Belo Monte, uma das principais referências de carrancas vem do Mestre Jasson. Dando vida e sentido aos galhos secos encontrados no semiárido alagoano, suas carrancas mantêm o formato orgânico e colorido de suas obras.